O que me vai na alma...

domingo, 29 de junho de 2008

Os nossos corpos...




"Os nossos corpos. No cemitério de pianos, a noite era negra, era absoluta. Dentro desse tempo opaco, os nosso corpos existiam. Os meus braços salvavam-se ao envolvê-la. As minhas mãos procuravam paz na superfície certa das suas costas. Os nossos lábios sabiam como encontrar-se. As nossas bocas construíam formas: tantos detalhes: formas que ninguém em toda a história do mundo conseguiu imaginar, formas impossíveis de serem imaginadas por pessoas vivas com pensamentos comuns de pessoas, formas irrepetivelmente concretas. Os nossos lábios. As nossas línguas sentiam o sabor das nossas bocas: a saliva morna, o sangue morno. E os meus lábios alastravam. Os meus lábios estendiam-se na pele do seu rosto. Segurava-lhe a cabeça: os dedos entre os cabelos: e os meus lábios misturavam-se na pele do seu rosto. A palma da minha mão direita descia pelo seu corpo, pela linha do seu corpo, passava pela cintura e descia, procurava o fim do vestido, encontrava as pernas dela e subia. Subia, pelo interior das suas coxas. E os meus lábios estavam ainda e também nos seus lábios porque respirávamos a mesma respiração. A ponta dos meus dedos deslizava, subia pelo interior quente, liso das suas coxas. Esse caminho era longo. Ela pousava uma mão à volta do meu braço. A ponta dos meus dedos deslizava e, no momento em que tocava o algodão das suas cuecas, sentia a mão dela a apertar-se à volta do meu braço e, ainda, respirávamos a mesma respiração. Os meus dedos, apertados pelas suas pernas, sentiam, devagar, o centro das cuecas de algodão, suaves depois do algodão, quentes depois do algodão. A palma da minha mão, sobre as cuecas, sentia os pêlos por baixo das cuecas. Os meus dedos: o meu corpo todo: os meus dedos sentiam, devagar, o algodão quente, húmido. Os nossos corpos desenhavam-se a negro no negro. Um pedaço de céu escuro da noite entrava pela janela do cemitério dos pianos. Era essa quase nenhuma claridade que mostrava as sombras e os contornos do corpo dela no momento em que lhe levantava o vestido até à cintura e lhe deslizava as cuecas pelas pernas. E deitava-a sobre um piano: o seu corpo: o meu corpo: os nossos corpos."

[In: José Luís Peixoto, O Cemitério dos Pianos]


[Delicioso, impressionista, realista... Cada vez fico mais fã de José Luís Peixoto! Não pára de me surpreender... Tive de interromper a leitura para vir partilhar este excerto FABULÁSTICO!!!!]